November 06, 2006

As várias facetas da vida ou a história da moça e do trem.


Ela acordou e viu que tinha sol. Precavida que era não hesitou em vestir um moleton preto, nunca se sabe, o tempo pode virar. Tomou seu café como de costume e saiu de casa para mais um dia de labuta.
O trabalho, enfadonho como sempre, não a impediu de sonhar. Tantas coisas, faculdade a vista, um emprego melhor, quem sabe. Só queria dormir, tomar um bom banho e dormir.
Planos pro futuro. Sim, iria mudar aqueles detalhes inertes, iria tornar o quarto mais colorido e iria colocar também um pouco de cor inusitada na monótona uniformidade da vida. No radio, tocava Cazuza.
Jornada de 9 horas, 1 hora de almoço. Marmita esquentada as pressas, talvez quente demais. Telefonemas pra casa, pagamento de algumas contas pela internet. As fotos na mesa a levam pra um infinito sem presente, passado ou futuro. Meio da semana, algumas tarefas podem ser deixadas pra amanhã. Como enviar aquele e-mail, doloroso e lírico, amoroso e verdadeiro; Hoje em dia não se mandam mais cartas de amor via correio, a modernidade tirou o romantismo das coisas. Tudo bem, no dia seguinte ela mandaria. Teria tempo para revisar os escritos do coração. Ela mandaria e ele saberia enfim como ela se sentia, tão indomada por aquele sentimento caloroso e explosivo. O amor é uma faca de dois gumes, não amar é sofrer e amar é sofrer em dobro.
Bateu o cartão às cinco e cinco, arrumou suas coisinhas, gentilmente chamadas de tralhas pelo chefe. Realmente a mesa estava um caos, uma confusão! Não teve tempo para arrumá-la, quem sabe no dia seguinte pela manha? Não despediu do chefe, quem sabe ele nem sentiria sua falta? Arrumou-se, pegou a sua bolsa e saiu pela porta.
Chegou na estação de trem as 5 e 15, tinha sorte por trabalhar perto, estava tão exausta, que pensou em dar uma cochilada assim que entrasse e sentasse no vagão. Subindo as escadas em direção à plataforma pensando nas aventuras cotidianas da vida, no que iria ter pro jantar. Na vida, simples e puramente.
Ao chegar à plataforma, avistou o trem ao longe. Sábado iria começar sua mudança, sua pequena mudança interior. Estava animada! Iria fazer também uma grande mudança exterior, pra ficar um pouco mais confiante pra certas coisas da vida....
O trem estava se aproximando. E com ele uma multidão de pessoas se aglomerando na beira da plataforma. A moça, perdida em pensamentos sobre ela mesma não percebeu e foi levada pelas pessoas que atropelavam umas as outras. Estava no limite entre a linha amarela e a linha da vida. Num empurrão, caiu nos trilhos.
O trem chegou. E sem piedade continuou seu percurso.
Morreu na contramão atrapalhando o trafego.

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A vida estava se tornando uma lamuria cada vez mais insuportável. Prolongar aquilo só traria sofrimento, dor e mais desilusão. O remédio havia acabado, e ela na verdade não queria mais continuar tomando drogas que a deixavam em estado de alerta, acordada e estranhamente calma. Não adiantava mais, as pessoas teriam que entender. Mas qual seria o desfecho da história, como seria o fim afinal? Pensou que teria que ser algo rápido e eficaz, algo que não deixaria seqüelas caso não conseguisse atingir o seu objetivo.
Ela não sabia exatamente quando tinha começado. Os surtos, as crises, os cortes, as brigas, o isolamento. Não tinha mais idéia, tinha se perdido e se arrastado ao longo de todos esses anos. Tinha perdido o gosto pela vida, pela família, por si mesma. Nunca tomou uma atitude mais drástica baseando-se nas pessoas ao redor. Mas eles a tinham largado de mão. Pelo menos era isso o que ela pensava.
A mãe, já não sabia mais o que fazer. Tinha raiva de si, da situação, da depressão da filha, do trabalho que não a deixava ficar mais tempo com ela, cuidar e tentar sanar o problema.
Rezava com seus santinhos pra que ela saísse daquele inferno, daquela maré desconhecida e cinza, tão cinza que até a chuva parecia mais alegre. Os irmãos não ousavam discordar, não brigavam mais, nem diziam mais que aquilo tudo era frescura da menininha mimada da família.
A moça tão jovem, tão bonita, tão pretensiosa, tão oportuna, tão procurada, tão amada e mais tantos tão agora tinha olhos de uma boneca morta. Um par de olhos que não procuravam por nada, não ansiavam e não queriam nada.
E então, escreveu um bilhete, não queria nada clichê, queria dizer que apesar de tudo sentia muito - e não sabia por que. Queria dizer as coisas que estavam além da sua compreensão, pelo menos no momento. Queria dizer que amava aquelas poucas pessoas, mais do que a si mesma, literalmente. Mas que esqueceu como formular sorrisos, como inventar desculpas e piscar os olhos vermelhos, na tentativa de parecer que foi um cisco.
Andou até a estação, não estava em condições de tomar um ônibus, mas também não tinha esperança que a caminhada a fizesse repensar e voltar pra uma subvida. Subiu as escadas num impulso mágico. E assim, como se fosse de propósito o trem estava chegando à plataforma na velocidade habitual. De repente, uma leveza. Não havia mais peso em seu coração. A dor daria lugar ao sentimento do vazio. Silêncio. Contravenções.
Jogou-se na frente da maquina pulsante.
Morreu na contramão atrapalhando o público.

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Amou daquela vez como se fosse maquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse passaro
Flutuou no ar como se fosse um principe
Se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado...

8 comments:

Claris said...

Perfeito.
Simplesmente perfeito e intenso.

Verões de um só fato, vc misturada neles. Eu vi, viu?

Anonymous said...

Clap, clap, clap, clap, clap, clap, clap, clap, clap, clap...

Anonymous said...

Uhnnnnnnnnnnnn... um cotidiano bem contado e bem inventado. Muito bom, Ally!

Lubi said...

Menina, perfeito.
Fico de boca aberta com seus escritos.
Carinho enorme.
Beijo.

Gabriela Zago said...

Brilhante! :)
Muito bom o final meio mistura de Chico Buarque com Anna Karenina! :D

Lubi said...

Porra, Sagá, só a partir do meio-dia! E eu estou tão nervosa, e com tanto medo de ter ou não passado que nem sei!
Quero saber logo...
Tomara que as horas voem...
Beijo.

Anonymous said...

Ally, obrigada pelas palavras viu, vai se preparando pro chá de bb!!!
Beijos!!!!

Anonymous said...

Como alguém tão pequena pode ser tão intensa!?
Me explica!?