October 09, 2006

Das imperfeições das manhãs



Numa mesma manhã...

A cigana acorda no quarto barato de motel ao lado do cara com quem resolveu sair para dar, o conheceu na balada, parecia divino, mas a luz da manhã traz traços de realidade tão cruéis que parece aniquilar o efeito de beleza devastador da noite anterior. Ela olha para o lado, não encontra afeição, cobre os peitos com o lençol que foi lavado sem amaciante, olha para seu rosto cansado e de rímel derretido pelo espelho do teto, sente o amargo ressequido na boca de quem aceitou todas as vodkas de facilidades que lhe foram oferecidas. Levanta, procura silenciosamente suas roupas que não eram muitas, apenas uma saia justa, calcinha, blusinha pequena e saldálias de salto fino que ela sabia que a aniquilariam na volta pra casa, sem carro. Depois de vestir-se, olha novamente pro sujeito encorpado que ainda ronca na cama e sai, não arrependida, apenas incomodada com as imperfeições que a manhã trouxe a situação quase irrecusável antes.

Enquanto isso, uma viatura de polícia passa com uma travesti detida por tráfico de drogas. A travesti e os policiais negociam sua liberdade: seria serviço completo ou apenas boquetes? Um pacote mensal de provisões evitariam problemas futuros... dois encontros por semana em troca de conseguir passar seu padê pra frente. Era um preço justo.

Ele trabalha há anos naquela balada, já havia me confidenciado algumas vezes que estava apenas esperando seus projetos paralelos deslancharem para abandonar aquela vida de bartender barata e irritante. Naquela noite ele estava sozinho no segundo bar, no do final do longo balcão. Conversava com os amigos que chegavam por lá, reclamava do estresse que outros estavam causando e da sua irritação com o ambiente, apartava sujeitos briguentos. Eu pergunto à ele o que havia acontecido com o lugar, que de tão mudado não comportava mais rostos familiares, como se quisessem fazer o underground daquele inferninho ser elevado e ele me diz, como quem precisava convencer os frequentadores de que as mudanças estavam boas, que a casa estava reformulada. Isso não convencia nem à ele. Aquela noite fora muito longa e quando finalmente às 9 horas da manhã, ele encerrou as atividades do bar, preparou o que deveria ser preparado pro fechamento, pegou sua mochila, despediu-se das pessoas e teve sua vista completamente ofuscada pela placidez daquela manhã.

Enquanto isso, um bêbado jogado na calçada vê o bartender Cansado passando, estende a mão em busca de ajuda mas Cansado desvia, segue em frente e não olha para trás. O bêbado agoniza e morre sufocado em sua própria pocinha de vômito.

Aquele porteiro não aguentava mais ficar todas as madrugadas no escuro, com aquela mini TV ligada, fumando 1 maço de cigarro por noite, sem ter companhia e sem muito o que fazer. Os filmes da madrugada de sábado na TV não são lá muito instrutivos, mas para ele estava bom. Aproveitava-os, manualmente falando se é que vocês me entendem, de forma que aquele ato já se tornara mecânico. Cerca de 2 minutos de filme, levantava com cuidado da sua cadeira, ia até o banheirinho e se limpava. Fumava 1 cigarro do lado de fora da portaria, observando o movimento noturno que acontecia logo ali, depois dos portões do prédio. A madrugada de sábado era a mais animada da semana. Ele corre para abrir o portão para os 6 amigos que chegam no prédio, um deles era moradora, aquela que ele sabia que fumava cigarro de cravo. Essa foi a única agitação a noite toda. Já são 6 horas, o porteiro do turno seguinte chega, ele sobe para entregar os jornais antes de sair, pega suas coisas e sai do prédio, respirando o ar da manhã de domingo. Pensa que ainda consegue chegar em casa a tempo de ir à missa das 11, mesmo se passar num puteiro barato, aqueles onde o serviço completo é vintão, lá no centro da cidade. Não quis passar na padaria pois sabia que sua mulher o esperaria com o café da manhã simples muito bem servido à mesa de toalhas de plástico em sua casa.

Enquanto isso, uma puta num bordel qualquer fica à janela roçando a ponta de seus dedos nos mamilos nus, seus seios são lindos e ela os aprecia, sabe que foram caros. É interrompida pelo próximo cliente batendo à porta e pede por 2 minutos, ainda não havia se limpado depois do último programa.


Os 6 entediados buscavam soluções para aquela festa péssima, de música que não os agradava, de bebidas que não faziam mais o mesmo efeito, da falta de ilícitos, das necessidades intrísecas e dos desprazeres do dinheiro perdido. Tiveram boa idéia, iriam para um motel, todos os 6, todos os 3 casais, comprariam bebidas e tudo estaria perfeito. A noite traz sempre essas coragens consigo. Porém não encontraram sequer 1 quarto de motel vago na região, na realidade até encontraram 1 que não aceitava o cartão de crédito que possuíam. Então, preocupados com a rotina do dia seguinte de uma delas, resolveram que iriam todos para o apartamento da outra e assim o fizeram. Às 4 da manhã compraram pães na padaria, foram pro apartamento, comeram, arrumaram camas quentes e dormiram. A manhã seguinte não fora igual para todos. Cada 1 teve seu momento. Momentos perfeitos a seu modo. Cheios de amores e gratidões, apenas para estes a realidade que a manhã trouxe estava perfeita.

Enquanto isso, a moradora do apartamento do lado chora na sacada observando o movimento da rua. Já eram quase 7h e seu marido acabara de partir, deixando-a traída e acompanhada apenas por mobílias velhas e muita cocaína para fazer passar os dias.

8 comments:

Anonymous said...

Caralho...ops...empolguei-me.

Novidades no Garotas Zipadas; por isso que é bom sempre passar aqui!

É um estória, cheia de observações da vida real, ou o contrário(?)...to tentando sentir o texto! Muito bem descrito; dá pra quase sentir o cheiro das coisas!!!

Lubi said...

Menina, vc tem talento... Adorei o texto. Mesmo.
Um grande beijo.

Aly said...

Genial!!!
Adorei dormir com vc na sua cama e adorei os abraços pela manhã...
Bjo linda!

Anonymous said...

Então amiga, isso é vingança?
Só pq eu não pude vir aqui com a frequência de antes, vc me coloca uma bíblia pra ler?
Adorei, qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência!
Saudades mil!!!
Beijocas, não me abandone! rs!

Anonymous said...

Adorei...TE AMO CLARISSA!

Anonymous said...

Perder-se nas suas palavras é delicioso. Como uma viagem inesperada para um lugar desconhecido, mas que ainda assim, possui uma familiaridade estranha.
É como banhar-se em um rio de águas profundas: lavar-se do que foi, do que não foi e do mais importante - do que poderia ter sido.
Meus olhos não leram: absorveram a mensagem, que agora circula em mim gerando idéias. E entre as lembranças ternas e as não tão desejáveis vou construindo sobre esse seu alicerce um mundo novo:
um lugar onde tudo seja apenas reflexo do que aconteceria se nós dois fossemos mais felizes.

Anonymous said...

Muito bom, clá!
=)

Anonymous said...

uau